Introdução
“Aquele
que se adianta 100 anos aos seus contemporâneos precisa de mais 100 anos para ser
compreendido” — escreveu Carl du Prel sobre Allan Kardec. A
frase, longe de mero elogio, descreve a distância natural entre o espírito que
traz ideias novas e a mentalidade de uma época ainda dominada por preconceitos,
dogmas e interesses imediatistas.
O Espiritismo, ao nascer sob a pena de Allan
Kardec, enfrentou esse abismo. No artigo Polêmica Espírita (Revista
Espírita, novembro de 1858), o Codificador advertia que não recuaria diante
da discussão séria dos princípios, estabelecendo desde cedo o método do livre
exame, da argumentação racional e da fé raciocinada. Essa disposição seria
vital para que a Doutrina sobrevivesse às resistências e perseguições que
inevitavelmente a acompanhariam.
Os
primeiros embates
Desde a França, onde nasceu a Codificação, até
terras distantes como o Brasil, o Espiritismo encontrou barreiras erguidas pela
incompreensão. Tours, por exemplo, destacou-se como uma das primeiras cidades
francesas a receber grupos de estudo, entre eles o do Dr. Chauvet, que publicou
em 1862 obra refutando os materialistas. Ali também, em 1864, o jovem Léon
Denis, então com 18 anos, iniciava a trajetória que o faria merecer o título de
“Apóstolo do Espiritismo”.
Os embates, porém, não se restringiam às ideias. O
chamado Auto-de-Fé de Barcelona (1861), quando centenas de livros
espíritas foram queimados em praça pública, mostrou que a intolerância ainda
usava métodos da “Idade Média”, como anotou Kardec. Contudo, o episódio
transformou-se em semente de divulgação, pois a arbitrariedade denunciou ao
mundo a força de um ideal que não podia ser calado.
O
Espiritismo chega ao Brasil
No Brasil, sinais da presença espírita antecederam
a própria Codificação. Documentos históricos registram reuniões na Bahia em
1845, bem antes das mesas girantes na Europa. Em 1853, o jornal O Cearense
comentava fenômenos mediúnicos, revelando o impacto cultural dessas
manifestações.
Mais tarde, nomes como Casimir Lieutaud, Júlio
César Leal e, sobretudo, Bezerra de Menezes — o “Médico dos Pobres” — dariam ao
Espiritismo brasileiro uma fisionomia própria, marcada pelo esforço de
adaptação às necessidades sociais e pela vivência da caridade como expressão
maior da fé espírita.
Bezerra, em seu discurso de 1886, narrou sua
travessia do ceticismo à fé, testemunhando que o Espiritismo não é apenas
sistema filosófico, mas também consolo para a alma sedenta de esperança. Sua
trajetória ecoa o prefácio de O Evangelho Segundo o Espiritismo, ditado
pelo Espírito de Verdade: “Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro mandamento.
Instruí-vos, eis o segundo.”
Razão, fé
e testemunho
O que une França e Brasil nesse itinerário
histórico é a necessidade de testemunho moral. A Doutrina não se
propagou apenas pela força das ideias, mas pela coragem daqueles que, em meio
às perseguições, sustentaram a bandeira da verdade. Eurípedes Barsanulfo, por
exemplo, chegou a responder judicialmente por sua mediunidade posta a serviço do
próximo.
Na Revista Espírita, Kardec já ensinava que
a luta contra a ignorância e o preconceito é inevitável quando a luz visita as
consciências. “Os fatos são mais
eloquentes que as palavras”, escrevia o Codificador, e essa máxima se
confirmou pela vida dos pioneiros que deram testemunho silencioso e
persistente.
Conclusão
O Espiritismo não surgiu para agradar à opinião
pública, mas para despertar consciências. Sua história é feita de lutas,
incompreensões e, ao mesmo tempo, de vitórias silenciosas que se multiplicam na
transformação moral dos indivíduos.
Carl du Prel estava certo: o homem que se adianta
ao seu tempo carece de séculos para ser entendido. Mas, como lembrou o Espírito
de Verdade, o chamado persiste:
“Tomai
da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado, elas se
estendam e repercutam de um extremo a outro do Universo.”
Que sigamos, pois, o roteiro seguro legado por
Kardec, lembrando que a polêmica essencial é a do raciocínio e da consciência,
jamais a do personalismo ou da intolerância. A verdade não teme o exame; ao
contrário, é nele que resplandece.
Referências
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de
Janeiro: FEB, 2010.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad.
Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, 2011.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). Diversos
números.
- BARRERAS F. Lorentino. O Processo dos Espíritas. São Paulo:
Madras Editora, 2004.
- LEAL, Júlio César. A Casa de Deus. Rio de Janeiro: FEB,
1928.
- LUCE, Gaston. Léon Denis: O Apóstolo do Espiritismo. Rio de
Janeiro: CELD, 2003.
- MONTEIRO, Eduardo C. Memórias de Bezerra de Menezes. São
Paulo: Madras Editora, 2005.
- NOBRE, Freitas. A perseguição policial contra Eurípedes
Barsanulfo. EDICEL, 1987.
- SOARES, Sylvio Brito. Vida e obra de Bezerra de Menezes. Rio
de Janeiro: FEB, 2010.
- WANTUIL, Zêus (org.). Grandes Espíritas do Brasil. Rio de
Janeiro: FEB, 2002.
- ALEXEI,
Vladimir. Uma Reflexão Histórica - A
Força de Um Ideal. Artigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário