Introdução
A obsessão e a possessão sempre despertaram atenção
em diferentes tradições religiosas e culturais. Contudo, à luz da Doutrina
Espírita codificada por Allan Kardec, esses fenômenos recebem uma interpretação
racional e moral, distante de visões místicas ou supersticiosas. O Espiritismo
mostra que não se trata de castigos divinos nem de ações de demônios
eternamente maus, mas sim de relações entre Espíritos — encarnados e
desencarnados — que refletem a lei de afinidade, a influência do meio e o grau
de imperfeição moral.
A
obsessão segundo O Livro dos Médiuns
Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns (1861),
classifica a obsessão em três graus principais:
- Obsessão simples – O Espírito perturbador
intromete-se nas comunicações, substitui Espíritos evocados ou interfere
no pensamento do médium. Embora incômodo, o médium mantém consciência do
engano e pode resistir.
- Fascinação – O Espírito obsessor atua no julgamento da
vítima, iludindo-a quanto à qualidade das mensagens ou ideias
transmitidas. O médium fascinado acredita cegamente no Espírito
comunicante, aceita elogios e afasta-se de quem o poderia esclarecer. É
considerada a forma mais perigosa de obsessão, pois paralisa o
discernimento.
- Subjugação – Trata-se de um constrangimento profundo da
vontade, que pode ser moral ou física. O obsidiado sente-se forçado a agir
contra a própria vontade, chegando a apresentar movimentos involuntários,
palavras ou atitudes que não controla.
Kardec observa que, em todos os graus, a porta de
entrada da obsessão está ligada a disposições morais, sendo o orgulho e
o egoísmo os principais fatores de vulnerabilidade.
A questão
da possessão: evolução do pensamento de Kardec
Inicialmente, Kardec rejeitou o termo possessão
por associá-lo à ideia teológica de demônios eternos e à noção de tomada
definitiva do corpo por um Espírito estranho. Na Revista Espírita de
outubro de 1858, afirmou:
“Para
nós, a possessão seria um sinônimo de subjugação. Se não adotamos esse termo,
foi por dois motivos: primeiro, porque implica a crença em seres criados e
votados perpetuamente ao mal (...); segundo, porque pressupõe igualmente a
ideia de tomada de posse do corpo por um Espírito estranho, uma espécie de
coabitação, quando só há constrangimento.”
Contudo, a observação de casos práticos levou-o a
rever essa posição. O mais notável foi o “Caso da Senhorita Júlia”,
publicado na Revista Espírita de dezembro de 1863 e janeiro de 1864.
O caso da
Senhorita Júlia
- A vítima: jovem de 23 anos, de temperamento dócil,
natural da Saboia.
- O fenômeno: após longos períodos de sonambulismo
natural, passou a ser dominada por um Espírito identificado como Fredegunda,
que se manifestava por sua voz e atitudes, impondo-lhe sofrimentos.
- O tratamento: a intervenção da Sociedade Espírita de
Paris, sob orientação de Espíritos protetores, conseguiu libertá-la. O
Espírito obsessor foi esclarecido e aceitou melhorar-se, pedindo uma nova
encarnação para reparar suas faltas.
- Os ensinamentos: o caso mostrou que pode
haver verdadeira possessão, isto é, uma substituição parcial e
temporária do Espírito encarnado por um desencarnado. A experiência também
ressaltou o papel do meio: a união de pensamento e a atmosfera fluídica
favorável foram decisivas para o êxito.
Kardec, diante da evidência, concluiu:
“Voltamos
à nossa asserção absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver
verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito
errante a um encarnado.” (Revista Espírita, dez. 1863).
A
obsessão e a possessão em A Gênese
Em A Gênese (1868), Kardec retoma o tema,
reconhecendo que a obsessão pode atingir diferentes graus até chegar à
possessão. Ressalta que tais fenômenos não são sobrenaturais, mas efeitos
naturais da lei de afinidade entre os Espíritos. Mostra ainda que nem toda
possessão é maléfica: Espíritos superiores também podem, em casos especiais,
influenciar diretamente um encarnado, mas sempre para fins úteis e
transitórios.
Causas da
obsessão e da possessão
As causas principais, segundo Kardec e confirmadas
por estudos posteriores, são:
- Moral do obsidiado: orgulho, egoísmo, vaidade
e vícios atraem Espíritos de mesma natureza.
- Laços anteriores: inimizades e compromissos
do passado podem gerar perseguições espirituais.
- Ambiente: meios desarmonizados, dominados por
interesses materiais ou conflitos, favorecem a ação dos maus Espíritos.
Meios de
combate
O Espiritismo propõe recursos racionais e morais
para a libertação:
- Transformação íntima – O obsidiado deve
esforçar-se por melhorar-se moralmente, substituindo vícios por virtudes.
- Oração e vigilância – A prece sincera eleva a
vibração do Espírito e atrai a assistência dos bons Espíritos.
- Evangelho e instrução – O estudo das leis divinas
esclarece e fortalece a vontade.
- Ambiente harmonioso – A união de pensamentos
elevados, especialmente em reuniões mediúnicas sérias, cria fluidos
benéficos que enfraquecem o obsessor.
- Esclarecimento do Espírito sofredor – O diálogo fraterno, conduzido por médiuns sérios e assistido por
Espíritos superiores, auxilia o obsessor a compreender sua condição e
buscar a regeneração.
Em casos graves de subjugação ou possessão, quando
a vítima não consegue reagir por si mesma, é necessária a intervenção de
terceiros, conforme recomenda Kardec.
Conclusão
A obsessão e a possessão, à luz do Espiritismo, não
são mistérios inexplicáveis, mas fenômenos que obedecem a leis naturais e
morais. Longe da visão punitiva ou sobrenatural, representam oportunidades de
aprendizado, tanto para os obsidiados quanto para os obsessores. O combate
eficaz não está em ritos exteriores, mas na transformação moral, na
força da prece e na solidariedade fraterna.
O estudo desses fenômenos, iniciado por Kardec e
registrado em O Livro dos Médiuns, na Revista Espírita e em A
Gênese, continua atual e necessário em uma sociedade marcada por ansiedade,
desequilíbrios e conflitos espirituais. Ele nos lembra que a verdadeira
libertação começa pelo autodomínio e pelo cultivo do bem.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. FEB.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). FEB.
- KARDEC, Allan. A Gênese. FEB.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. FEB.
- PIRES, José Herculano. Obsessão, o Passe e a Doutrinação.
Paideia.
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