Introdução
A frase
provocativa — “Ouvir vozes e ver Espíritos não é motivo para tomar remédio
de tarja preta pelo resto da vida” (*) — traduz um debate atual e
necessário: a fronteira entre fenômenos espirituais e transtornos psíquicos.
A
Organização Mundial da Saúde (OMS) já reconhece o bem-estar espiritual como
parte integrante da saúde desde 1998, ao lado dos aspectos biológicos,
psicológicos e sociais. Essa mudança aponta para a necessidade de compreender o
ser humano em sua integralidade. Se há saúde espiritual, há também enfermidades
da alma, e ignorar esse campo significa oferecer tratamentos incompletos.
Neste
artigo, analisamos o tema à luz da Doutrina Espírita codificada por Allan
Kardec, da Revista Espírita (1858–1869) e de obras complementares, em
diálogo com os avanços médicos e psiquiátricos contemporâneos.
(*) Oliveira, S. F. de. Medicina reconhece a
obsessão espiritual. USP.
1. O olhar da Medicina e da Psiquiatria
A
Classificação Internacional de Doenças (CID-10), documento oficial da OMS,
define os “estados de transe e possessão” (F44.3) como transtornos apenas
quando involuntários e indesejados, excluindo os que fazem parte de práticas
religiosas ou culturais. Assim, manifestações em contextos espiritualistas —
como em centros espíritas ou cultos mediúnicos — não são consideradas
patológicas pela Medicina.
Na
psiquiatria, há distinção entre experiências espirituais normais e transtornos
dissociativos graves. Enquanto as primeiras podem estar ligadas à mediunidade,
as segundas associam-se geralmente a traumas, abusos ou sofrimento intenso.
Essa diferenciação é essencial para evitar diagnósticos equivocados e
tratamentos medicamentosos desnecessários.
2. A explicação espírita
Allan
Kardec inicialmente afirmava que não havia possessão no sentido vulgar, apenas
obsessão e subjugação. Porém, cinco anos depois, retificou sua posição,
reconhecendo a possibilidade de verdadeira possessão, entendida como a
substituição temporária e parcial de um Espírito desencarnado sobre um
encarnado.
Segundo
Kardec (Revista Espírita, 1863), esse processo é intermitente, pois
nenhum Espírito pode ocupar definitivamente o corpo de outro — a ligação
perispiritual só se dá na concepção.
A
obsessão, por sua vez, ocorre quando o Espírito atua de fora, envolvendo o
encarnado por meio de seu perispírito, podendo levá-lo à fascinação ou
subjugação. Em ambos os casos, porém, o livre-arbítrio não se perde: sempre é
possível resistir, desde que haja vontade firme e apoio espiritual adequado.
Hermínio
C. Miranda, em estudos posteriores, aprofundou a explicação espírita,
utilizando a metáfora do “condomínio espiritual”, na qual várias entidades
disputam o mesmo organismo físico. Essa visão ajuda a compreender quadros que,
do ponto de vista psiquiátrico, se aproximam da chamada múltipla personalidade.
3. A visão espírita e a saúde integral
A
Doutrina Espírita considera a obsessão e a possessão como intercorrências
espirituais que afetam corpo e mente, mas não como doenças em si. O tratamento,
portanto, deve ocorrer em duas frentes:
- Psiquiátrica, quando há sofrimento
psíquico real, necessidade de medicação ou risco à vida do paciente.
- Espírita, por meio da desobsessão,
que consiste em diálogo fraterno com o Espírito comunicante, prece,
evangelização e reforma íntima do obsidiado.
Nesse
processo, não apenas o encarnado encontra libertação, mas também o desencarnado
é convidado a rever seus sentimentos e renunciar a intenções de vingança ou
domínio. Kardec chamou esse processo de “dupla cura”.
4. O desafio contemporâneo
Vivemos
em um tempo em que a saúde mental se tornou prioridade global. O número de
diagnósticos de depressão, ansiedade e transtornos dissociativos cresceu
significativamente nas últimas décadas. No entanto, é preciso cuidado para não
reduzir todas as experiências espirituais a quadros clínicos.
A
inclusão do bem-estar espiritual pela OMS abre espaço para uma medicina mais
integrativa, que dialogue com a religiosidade e a mediunidade sem preconceitos.
Centros de pesquisa em espiritualidade e saúde, como os da USP e da Unifesp, já
investigam cientificamente a influência da fé, da prece e das práticas
espirituais na saúde integral.
Conclusão
A frase
que inspirou este artigo resume bem a questão: nem todo fenômeno espiritual é
sinal de doença mental. Reconhecer a diferença entre transtornos patológicos e
manifestações espirituais é essencial para evitar tanto a medicalização
desnecessária quanto a negligência terapêutica.
Para o
Espiritismo, obsessão e possessão são desafios educativos da alma, que convidam
à vigilância moral, ao fortalecimento da fé e ao exercício da caridade. Para a
Medicina, cabe distinguir o que exige intervenção clínica do que pode ser
considerado prática cultural ou religiosa.
No
futuro, como previu Kardec, a ciência integrará o elemento espiritual em suas
análises, ampliando horizontes e oferecendo tratamentos mais completos para o
ser humano integral — corpo, mente e Espírito.
Referências
- Allan Kardec. O Livro dos
Espíritos. FEB, ed. histórica.
- Allan Kardec. O Livro dos
Médiuns. FEB, ed. histórica.
- Allan Kardec. A Gênese.
FEB, ed. histórica.
- Allan Kardec. Revista
Espírita (1858–1869). FEB.
- Hermínio C. Miranda. Diversidade
dos Carismas. Lachâtre, 1994.
- Hermínio C. Miranda. Condomínio
Espiritual. Folha Espírita, 1993.
- Francisco C. Xavier (André
Luiz). Nos Domínios da Mediunidade. FEB, 2015.
- Organização Mundial da
Saúde. CID-10 – Classificação Internacional de Doenças.
- American Psychiatric
Association. DSM-5. Artmed, 2014.
- Kaplan, H.; Sadock, B.;
Grebb, J. Compêndio de Psiquiatria. Artmed.
- Oliveira, S. F. de. Medicina
reconhece a obsessão espiritual. USP.
- Moreira, Fernando A., A Medicina Aceita A Possessão?,
“Reformador” (FEB); junho 2016).
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