Introdução
O
Espiritismo, desde seu surgimento no século XIX, tem sido objeto de análise por
diferentes áreas do conhecimento. Enquanto a Doutrina Espírita, codificada por
Allan Kardec, se apresenta como ciência de observação dos fenômenos
espirituais, filosofia moral e religião no sentido de religação do ser humano
com Deus, pesquisadores sociais a abordam como movimento cultural e religioso.
A questão levantada por Marion Aubrée e François Laplantine em La Table, le
Livre et les Esprits (1990) é instigante: seria o Espiritismo uma ideologia
migrante, adaptando-se a diferentes contextos históricos e geográficos?
O Surgimento e a Codificação
Embora
os fenômenos das mesas girantes tenham chamado atenção nos Estados Unidos nos
anos 1840, o Espiritismo não nasceu como mera prática empírica. Esses fatos
apenas abriram caminho para a investigação sistemática conduzida por Allan
Kardec na França. A partir de 1857, com a publicação de O Livro dos
Espíritos, surgiu a Doutrina Espírita codificada, que se baseia no tripé
ciência, filosofia e moral.
Portanto,
ao contrário de uma ideologia de origem norte-americana, o Espiritismo é fruto
de uma elaboração racional e filosófica francesa, fundamentada na observação e
análise crítica dos fenômenos mediúnicos.
Da França ao Brasil: Recepção e
Transformação
Após
seu auge na França da segunda metade do século XIX, o Espiritismo sofreu
declínio, motivado por diversos fatores:
- fraudes
mediúnicas que comprometeram a credibilidade pública;
- avanço das
ciências materiais, que explicaram parcialmente fenômenos antes
considerados espirituais;
- disputas
internas com ocultistas, teosofistas e sociedades metapsíquicas;
- mudanças
culturais e filosóficas, como a ascensão do positivismo e depois do
relativismo;
- o
desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, que ofereceram novas
interpretações para o inconsciente e a mediunidade.
No
Brasil, contudo, o Espiritismo encontrou terreno fértil. Sua linguagem moral, o
diálogo com tradições religiosas locais e a ênfase na caridade favoreceram sua
popularização, transformando-o em movimento social de grande alcance. Nesse
processo, a Doutrina passou a ser vivida mais como religião organizada do que
como filosofia e ciência.
Ideologia Migrante ou Doutrina
Universal?
Do
ponto de vista antropológico, o Espiritismo pode ser visto como ideologia
migrante, pois se adaptou aos contextos culturais de diferentes países. Mas,
sob a ótica da Doutrina Espírita, o que migra não é uma ideologia, e sim uma
revelação de caráter universal que se manifesta em diferentes formas sociais.
Kardec já advertia, na Revista Espírita, que o Espiritismo não pertence
a um povo, mas à humanidade.
Assim,
as adaptações nacionais — sejam na França, no Brasil ou em outros países —
representam mais a roupagem cultural de um princípio universal do que uma
migração ideológica.
O Valor das Pesquisas Acadêmicas
Pesquisas
como a de Aubrée e Laplantine têm importância por revelar como o Espiritismo se
manifesta no campo social, religioso e cultural. No entanto, ao priorizarem o
aspecto externo e prático, deixam em segundo plano o núcleo filosófico e
científico que fundamenta a Doutrina Espírita. A abordagem antropológica
explica a difusão, mas não esgota o sentido espiritual da codificação espírita.
Conclusão
O
Espiritismo não é uma ideologia migrante, mas uma doutrina de caráter universal
que se expressa de modos distintos conforme a cultura em que se insere. A
análise sociológica enriquece a compreensão de suas transformações, mas não
deve obscurecer sua essência, que permanece fiel ao método espírita: observação,
análise racional e universalidade do ensino dos Espíritos.
Referências
- KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC,
Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC,
Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC,
Allan. Revista Espírita (1858–1869).
- AUBRÉE,
Marion; LAPLANTINE, François. La Table, le Livre et les Esprits.
Éditions Jean-Claude Lattès, 1990.
- DONHA, João
Alberto Vendrani. “Uma Radiografia Antropológica do Espiritismo”. Jornal Abertura,
junho de 2000.
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